Aculturação pela fé.
(Por Douglas Naegele)
A
fé, sempre foi e sempre será, sob nosso ponto de vista, a maior força
de convencimento da humanidade. Usada como arma de dominação e
aculturação levou ao fim inúmeras seitas, cultos e religiões primitivas.
Portanto, podemos afirmar que, muitas vezes onde as armas convencionais
não penetraram, a fonte inesgotável de consolo e amor fez porto e
assegurou a criação de um novo mercado de consumo e fornecimento de
mão-de-obra barata, e até escrava. Os nativos brasileiros, os africanos
escravizados, e outras tantas civilizações, são prova irrefutável dessa
prática.
Conflitos iniciais
No Brasil, como em todo o globo terrestre, antes da chegada dos
europeus, os povos nativos mantinham sua cultura própria, bem como
seguiam rituais totêmicos ancestrais. A dominação européia os fez, pela
força das armas e da fé, abandonar sistematicamente suas origens. Os
povos africanos escravizados, chegados posteriormente, sofreram a mesma
intervenção. Entretanto, a prática dos rituais ancestrais, tanto
nativos, quanto africanos, resistiu a todas as tentativas de extermínio,
pois até mesmo os afro-descendentes que se cristianizaram, através da
conversão forçada, ou não, mantinham singela relação com os deuses
ancestrais. Tanto que nasce dessa relação, somada às praticas dos cultos
totêmicos dos nativos brasileiros, o sincretismo entre os deuses
ancestrais e o panteão de santos católico-romanos.
O candomblé, apesar de duramente combatido, assim como os cultos
sincréticos (umbanda, quimbanda, macumba e xangô), sobreviveu e, de
certo modo, se fortaleceu. Tanto o é que, na soma de inúmeras
personificações divinizadas, os orixás, por fim, se tornaram unânimes
nos terreiros em todo o território brasileiro. Sendo assim, os rituais
ancestrais africanos que eram comuns nas senzalas, eram mais livremente
praticados nos quilombos, sendo de conhecimento de todos os
afro-descendentes escravizados, com isso, ao menos podemos suspeitar, e
talvez até afirmar, que, os fugitivos do cativeiro, mesmo
cristianizados, tendo como destino os quilombos, poderiam esperar o
conforto espiritual de seus deuses ancestrais, os orixás.
Ao longo do tempo, séculos a fio, comunidades afro-descendentes se
constituíram nas encostas dos morros e em alguns casos fixaram-se nas
periferias. Primeiramente como quilombos (nas encostas dos morros),
depois, acrescidas de famílias brancas e miscigenadas, pobres e
desabrigadas pelos interesses dos mais abastados, transformaram-se no
que ficou conhecido com o nome de “favelas”. Tais comunidades,
invariavelmente, comportavam em suas vielas um terreiro de candomblé, ou
da sincrética umbanda, quando não dois ou três desses templos. Apesar
do culto aos deuses ancestrais, a Igreja Católica, através do processo
de aculturação, acabou por se fixar também nessas comunidades, nem tanto
pela solicitação dos moradores, mas pela imposição e a perseguição às
seitas afro-brasileiras.
No final do século XIX, as denominações protestantes desembarcaram no
Brasil, em número expressivo. Sem encontrar eco junto às classes mais
abastadas, profundamente arraigadas às crenças católicas, elas acabam
por atingir um público originário, em sua maioria, das classes
trabalhadoras. Operários de origem européia, pequenos comerciantes
(ingleses e estadunidenses), agricultores (principalmente alemães),
profissionais liberais e trabalhadores autônomos formarão o núcleo
desenvolvedor que irradiará as idéias protestantes no solo brasileiro.
Os primeiros adeptos fora do círculo de fiéis originais foram os
vizinhos e empregados, mas principalmente esses últimos. Moradores de
comunidades de pouco poder aquisitivo, ou das periferias, os empregados
convertidos transmitem a “verdade” protestante aos seus amigos,
parentes e vizinhos. E deste modo as denominações reformadas
espalham-se por estas comunidades e periferias, sem, contudo, causarem
um grande impacto na freqüência da Igreja Católica ou dos terreiros.
Convencimento
Conservadoras, as igrejas cristãs, tanto católicas quanto reformadas,
mantinham-se fiéis ao poder vigente. Fato esse que não se repetia
necessariamente entre os cultos de origem africana e sincretistas, por
serem combatidos pelas autoridades. Teoricamente, o país era, desde a
Proclamação da República, laico. Todavia, a perseguição imposta aos
terreiros de candomblé e de umbanda, baseava-se na suposição de que
estes eram freqüentados por “capoeiras”, prostitutas e “marginais de toda espécie”,
o que, obviamente, era verdade, mesmo porque eram nas favelas e na
periferia que os marginalizados encontravam abrigo. Isso não quer dizer,
necessariamente, que famílias de trabalhadores não freqüentassem os
terreiros, muito ao contrário. A grande maioria das famílias residentes
nestas comunidades mantinha o que podemos chamar de “vida dupla”, ou
dupla devoção. Portanto, durante as noites de segunda a sexta-feira
dedicava a fé ao culto dos orixás, caboclos e guias, e aos domingos
faziam suas preces nas igrejas católicas. . Fato marcante, expoente do
sincretismo brasileiro, estava no batismo do recém-nascido, pois até
mesmo os mais fervorosos devotos, incluindo aí os babalorixás e “pais-de-santos”, insistiam na prática cristã do batismo.
Nesse esteio, sob os auspiciosos olhos da lei, o batuque das
senzalas, agora dando o ritmo dos terreiros, dá a luz a uma efervescente
vida cultural, festas e reuniões sociais aconteciam nos mesmos lugares
dos cultos de origem africana. E é dessa raiz que nasce o samba, o qual
também será perseguido pelas mesmas acusações que cabiam aos terreiros
de candomblé e de umbanda. E da força do samba, brotam as Escolas de
Samba que, mantendo uma estreita afinidade com os terreiros, serão em
pouco tempo catalisadoras de toda a vida cultural e social dessas
comunidades.
Todavia, num processo que levaria décadas para se finalizar, as
favelas e as comunidades periféricas, redutos naturais do samba e dos
cultos de origem africana e sincréticos, dariam espaço ao mais lento e
gradativo processo de aculturação sofrida por um setor de uma sociedade
que desenvolveu seu próprio meio de expressão religioso e cultural.
Na segunda metade do século XX, mais precisamente na década de 1960,
as comunidades foram invadidas com a massificação dos ritmos
estrangeiros que inundaram as rádios populares. Esses ritmos passaram a
dividir o gosto das camadas menos favorecidas de nossa sociedade,
principalmente da juventude, já influenciada de certa forma pelo
imaginário hollywoodiano do cinema. Coincidentemente, foi no ano de
1960, que o pastor Robert McAlister, passou a ministrar cultos pelo
rádio, onde pregava abertamente a cura espiritual e financeira, que ele
associava a possessão dos demônios, nascia em território brasileiro o
gérmen da Teologia da Prosperidade. Era o início da era dos pastores
eletrônicos, que ganharia os lares nacionais nas décadas seguites. Em
1968, McAlister, publica um folheto intitulado: “Mãe-de-Santo: História e testemunho de Georgina Aragão dos Santos Franco - a verdade sobre o candomblé e a umbanda”,
em que contava a trajetória de D. Georgina, dos cultos afro-brasileiros
até à conversão ao cristianismo neo-pentecostal de McAlister.
As Escolas de Samba, que funcionavam como pólo aglutinador de cultura
e vida social das comunidades periféricas e das favelas, desde a década
de 1960, acolheram dentro de seus quadros de associados pessoas
oriundas da classe média e que devido ao melhor poder aquisitivo
adquiriam as melhores fantasias e os melhores lugares nas
“rodas-de-samba”. Contudo, para a mocidade herdeira das tradições do
terreiro, da capoeira e do samba, tais heranças não traziam mais maiores
significações. Um afastamento, não percebido, ocorreria sem que os
próprios envolvidos se dessem conta, e em pouquíssimo tempo, as
tradições seriam consideradas coisas velhas e ultrapassadas.
Na virada da década de 1970 para a de 1980, os herdeiros do samba, da
capoeira e dos atabaques dos terreiros, abandonam, gradativamente, suas
heranças e aproximam-se do ideal de consumo levado massiçamente às
rádios pelos ritmos estrangeiros e aos televisores, que se tornavam cada
vez mais populares, pelos seriados enlatados. Os pais dessa geração,
não encontrando mais conforto nas missas dominicais, nem nos cultos
ancestrais, migram para a nova visão de relacionamento com Deus
propiciado pelas igrejas neo-pentecostais que fizeram assento nas
comunidades.
As denominações cristãs tradicionais que fincaram bandeira nas
favelas e comunidades periféricas, incluindo a Igreja Católica, viviam um
acordo tácito com os terreiros e entre si, onde cada uma das
orientações religiosas, mesmo com todas as possíveis afrontas,
mantinham-se fora dos caminhos umas das outras. No entanto, já não
respondiam mais ao anseio dos fiéis e foram perdendo espaço para o novo
tipo de igreja, que além de pelejar contra o Diabo, no mundo espiritual,
expulsava-o ao vivo e a cores na televisão!
Rompidos com Robert McAlister, três dos seus mais prodigiosos
pregadores, fundaram suas próprias denominações. Edir Macedo e Romildo
Ribeiro Soares, seu cunhado, em 1977, fundam a Igreja Universal do Reino
de Deus. Pouco depois, Romildo, agora auto-cognominado R.R.Soares,
rompe com Macedo e cria sua própria denominação, a Igreja Internacional
da Graça de Deus (1980). Miguel Ângelo da Silva Ferreira, considerado
por muitos como o sucessor de McAlister dentro da Igreja Pentecostal de
Nova Vida, em 1984, funda a Igreja Cristo Vive. Num brevíssimo espaço de
tempo as novas denominações invadem as casas através dos televisores e
atraem um impressionante número de fiéis dispostos a darem tudo o que
têm para conseguirem a “prosperidade”, expulsando os “demônios da ruína financeira” de suas vidas.
Desenvolvendo-se lado a lado com tudo isso outro fenômeno cresce e
atinge, como já dissemos acima, a parcela mais vulnerável de uma
sociedade, sua mocidade, que influenciada pelos novos ritmos e pela
novidade dos videoclipes sexistas, nos quais, invariavelmente, apareciam
membros de gangues armados, cercados de mulheres vulgares e muito
dinheiro, com letras que exaltavam o crime, a violência, e o assassinato
de policiais. Era um estímulo à “vida bandida” e à cooptação pelas “organizações criminosas” que tomaram as favelas e as comunidades periféricas desassistidas pelas autoridades estatais. Era o que a mídia chamaria de “Poder Paralelo”,
que se formava e passaria a ditar as normas de condutas em grande parte
dessas comunidades, exercendo o papel do Estado ausente.
A Nova Estrutura
A grande massa de jovens que tomam a atitude de se unirem ao dito “crime organizado”,
são em sua maioria, advindos não de famílias desestruturadas pelas
drogas ou pelo crime como se pode pensar a princípio, mas são de
famílias, de conformação comum, pai, mãe, irmãos, com pouca ou nenhuma
instrução, em que o pai “provedor” não recebe o suficiente para dar à
família o “conforto” mínimo “necessário”, para os padrões de consumo impostos pelos videoclipes e ostentados pelos “olheiros”, “soldados”, “vapores” e “gerentes” do tráfico.
A oferta de trabalho no “exército do tráfico”, muitas das
vezes melhor remunerado que uma profissão sem exigência mínima de
escolaridade, fez muitos meninos e meninas das comunidades sonharem em
cerrar fileiras com a força impositiva que se assenhoreava dessas
localidades. Soma-se a isso, o “respeito” causado pela exibição de forte armamento e a “autoridade” exercida pela hierarquia do tráfico. “Fama, poder e dinheiro” formam a tríade de aliciamento que servirá como pilar das facções criminosas chamadas pela mídia de “Poder Paralelo”.
Ao som do miscigenado “funk”, mistura do batuque afro dos terreiros e da música “Black”
estadunidense, recheado por letras enaltecendo os feitos das facções
criminosas e de seus líderes, posteriormente conhecido como “Proibidão”,
ou apregoando a vulgaridade feminina, uma geração inteira cresce nas
vielas. Em contrapartida, a desilusão com as denominações tradicionais,
em todos os campos religiosos, levam os pais dessa mesma mocidade em
busca de soluções imediatas para seus problemas, como as oferecidas
pelas denominações neo-pentecostais. O que irá acontecer paulatinamente é
uma migração religiosa jamais vista até então. Cristãos católicos e
protestantes de denominações tradicionais, bem como, praticantes e
freqüentadores das “tendas espíritas”, claramente motivados
pela necessidade econômica, “viram casaca” e convertem-se às
denominações neo-pentecostais. Líderes espirituais, ou seja,
babalorixás, ialorixás, “pais e mães-de-santos”, surpreendendo até seus fiéis abandonam seus “guias” e orixás para tornarem-se “ovelhas” de um rebanho sedento por milagres financeiros, disposto a doar tudo para receber uma migalha de benção.
No auge dessa onda migratória, incontáveis pequenas denominações
brotam nas vielas das comunidades de baixa-renda e favelas. Uma
enxurrada de “assembléias de Deus” espraia-se e onde quer que houvesse gente faminta de consolo, uma nova “casa de Deus”
surgia. A década de 1990, período em que a ideologia política e
econômica neoliberal toma as rédeas do país, serviu de palco para o que
podemos chamar de uma grande inversão de valores, ao menos, nos dois
aspectos aqui abordados, o cultural e o religioso.
Conclusão
Motivadas por aquilo que lhes era proposto pelas igrejas
neo-pentecostais, ou seja, nova relação com Deus, na qual o fiel tem o “direito”
de exigir que Deus lhes abençoe em todos os campos de suas vidas, com
maior ênfase na vida financeira. Segundo essa corrente do pensamento
teológico, se a vida do crente, em algum momento não estiver plena, isso
significa que há uma presença demoníaca “amarrando-a”, com o
consentimento de Deus, a fim de que o fiel seja provado em sua devoção
ao divino, fazendo um sacrifício, obviamente financeiro, o fiel dá de
bom grado o que pode e o que não pode, a fim de sensibilizar a Deus para
suas necessidades imediatas. Esse ato de fé cria de imediato as
condições para que o crente exija de Deus seus direitos.
Essa nova relação fez com que o número de adeptos das denominações
neo-pentecostais crescesse ao ponto de fazer com que correntes da antiga
teologia pentecostal se “adequassem” e usassem dos mesmos
artifícios estratégicos de crescimento apregoados pelas novas
denominações. A maior e mais significativa ruptura se deu dentro do seio
das Assembléias de Deus, com a saída do Pr. Silas Malafaia das hordas
da setuagenária Convenção Geral das Assembléias de Deus no Brasil
(CGADB), justamente por sua ligação, não somente com as denominações
neo-pentecostais, mas principalmente pela adesão total e completa às
idéias da Teologia da Prosperidade.
A prosperidade, ou seja, a necessidade econômico-financeira, por fim,
suplantou a tradição ancestral mantida desde os tempos coloniais. Os
terreiros que haviam sobrevivido às perseguições da Igreja Católica
durante os anos da colônia, do Brasil Imperial e dois terços do século
XX, sucumbiram à aculturação da fé.
Obviamente, os criadores da Teologia da Prosperidade e seus
disseminadores, sequer por algum instante, imaginaram o estrago que suas
ideias causariam. Nesse sentido, o terreno propício para a implantação
de uma ideologia política e econômica conhecida como “neoliberalismo, ao
menos no Brasil, pode ter se iniciado, entre tantos outros fatores
sócio-econômicos, também, pela absorção de uma nova fé estrangeira, em
que novas tradições e releituras de outras desbancaram os orixás e
introduziram um “deus” estimulador da ganância e do individualismo.
Douglas Naegele é teólogo e psicanalista, responsável pelo site: Douglas Naegele: Psicanálise e Teologia - Um olhar junguiano (www.douglasnaegele.com)
Texto extraído do site www.algoadizer.com.br
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